Peso líquido

Ponho meus fones de ouvido
aciono a playlist de oitenta
tiro meus óculos multifocais
que já não me trazem tão bem
os detalhes mais próximos
acendo um cigarro
posiciono o arqueológico cinzeiro
e abrindo meu bloco de notas 
no celular começo
embora o cansaço me esmague
com um peso que não é físico
nem mental
é um peso líquido
de alma afogada
que se agarra ao passado
como se fosse um ardente futuro
me pergunto
se terei mais dez anos pra errar
tentando acertar as palavras
temendo outra virada de página
que me pareça em branco
ainda que cheia de linhas pra contar.

Ana Paula Coelho

Todos os encantos

traços diversos não te desenham
segues imutável em minha memória
nem o tempo transcende o teu rosto
como um poema rimado em duas cores

está além do meu esforço
te escrever em letra de música
te cantar na mesa de um bar
fico só na intenção, nesse vento 
que me sopra o desejo no coração...

sei que dormes em todos os encantos
transferindo-se por múltiplas esquinas
nunca te demoras num mesmo abraço
teus lábios percorrem templos e ruínas 

Ana Paula B. Coelho

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Sonâmbula

Os dias passam feito cometas
e cada vez mais
prefiro o silêncio das horas
- desenho pálido que se contorna
de frases não ditas
de desejos em pó

quanto mais caminho
mais meus pés preferem dançar
que sem ritmo não há direção
não há sustentação ilusória
pra música da consciência tocar

sigo apesar dos percalços
dos olhos que já me julgaram
do corpo virado de costas
do dedo apontando pra fora
esperando minha dignidade voltar

prefiro ficar no ponto em que estou
sonâmbula dos versos rimados
das cinzas, dos arrependimentos
jamais escrava de um vocabulário
apenas palhaça da simplicidade.

Ana Paula B. Coelho

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Morte branca

Branca é a falta das palavras
uma névoa na estrada
tornando o caminho inseguro

tenho medo de jamais escrever outro poema

penso se o mais recente foi o último
como a morte onde acordo sem nada 
quando antes tinha tudo.

Ana Paula B. Coelho

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Rima insolúvel

Me prendem as naves de sol
refletidas em espelhos
dourando-me as sombras
o medo
a cortina na janela
que me esconde do mundo

Num silêncio de verso
um eco absurdo 
do alto em que me inspirei
rima insolúvel
teu sobrenome entre as pausas
que destilei

Vontade é um segredo
que a saudade não consome
e do lado de cá
teus olhos
pedras cinzas que atirei num rio
que não chega ao mar.

Ana Paula B. Coelho

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Entremeios

não queria viver tanto
gastar um mundo que só muda
aos olhos do tempo
que não me conta o que viu

sigo calada e perdida
entre o que penso que aprendi
entre o quanto me enganei
entremeios de mim

Ana Paula B. Coelho

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Ingratas

correm mudas 
as palavras que beijei 
décadas atrás

como desconhecidas
preferem brincar entre si
ignorando minha saudade

ingratas que tanto rimei
intercalei e enterneci
entrelinhas e verbos

ganharam o mundo
traçaram outros rumos
e agora esse desenquanto

Ana Paula B. Coelho

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Elephant

Talvez eu escreva bobagens
por tantas decepções amorosas que tive
por tanta procura de mim
de me explicar o tempo todo
que mesmo sendo uma boa pessoa
o mundo pediria minha cabeça

talvez eu sinta por dentro certa poesia
de tanto me levar por Linklater
por Dickens e Elephant de Damien Rice
janelas onde meu coração sempre se debruçou

talvez eu seja poeta (quem sabe?)
de tanto visitar meus futuros passados 
minhas quatro décadas de sopro isolado
sob tetos estrelados de adesivos fluorescentes

talvez eu beije quem me leia (...)
por tanta vontade de não ser feliz sozinha 
de acreditar que somos para dar e receber amor
apesar das tantas máscaras usadas e trocadas
nas faces embriagadas de talvez
de nãos e de jamais 
ditos constantemente sem remorsos.

Ana Paula B.Coelho

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O que se deve

Se deve permanecer
embora já se saiba
que o tempo cria seus abismos
suas inconsistências
seus muros intransponíveis

Se deve insistir
ainda que os olhos se distraiam 
não mais se demorem em pontos fixos
que nada representam além de memórias
agora varridas por tempestades

Se deve vibrar 
mesmo que os dias não sintam as tardes
os beijos se procurem apenas ao deitar
o amor mais pareça roteiro de filme barato
e a fidelidade um argumento insustentável.

Ana Paula B. Coelho

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