Contaminada

O mundo inteiro é um saco de merdas se rasgando. Não posso salvá-lo. Sei que nos movemos em direção à miragem, nossas vidas são desperdiçadas, como as de todo mundo. Eu sei que nove décimos de mim já morreram, mas eu guardo o décimo restante como uma arma.

Charles Bukowski


Ponho café na xícara
acendo meu cigarro
e abro o bloco de notas do computador
pra tentar escrever inutensílios
como já dizia Leminski

sou assim misturada de Agora
Cuba Libre de 70, 80 e 90
entre atual e ultrapassada
nesse instante que ninguém mais usa um notebook
e os smartphones comicham as mãos do mundo
ou será que já existe algo mais moderno
e eu tô aqui de burra e palhaça?

não sei

estou cada dia mais velha
com dores estranhas na coluna
com café me amarelando os dentes
cigarro me deixando o pulmão mais sujo
e o pior: 
a nicotina fodendo meus neurônios
quando escrever ainda é um prazer 
além de comer, dormir e acordar 
pra pensar em escrever, comer, dormir
e acordar outra vez 

o mundo moderno tá me deixando tão out
o cigarro tão velha e demorada
e meu novo marido tá me pesando nos ombros
não por ser uma pessoa ruim, mas por ser marido
e os maridos consomem ossos e alma

então voltando
eu acordo e tem uma tecnologia nova 
em cada bar e boca de esquina, em cada propaganda
e penso se ainda escrevem poemas no papel?

eu teclo!

teclo, teclo
tico e teco movendo parafusos soltos
perdidos, livres pra pensar besteiras
e penso no café ao lado, no cigarro
penso em falar mal das pessoas
(isso só me acomete quando estou sozinha)
no social até posso ser um tanto debochada
mas geralmente tento ser gentil

"um tanto debochada" me fez lembrar dos esnobes
de repente me deu vontade de falar mal dos esnobes
como se fossem importantes, mas não são
são merdas que fedem igual a tantas outras merdas
mas a merda esnobe me irrita mais
pode estar disfarçada de amigo 
ou de parente

tem aquele que só te convida aos eventos
pra te mostrar a casa enorme, o emprego
o casamento, o carro novo
as fotos da última viagem de férias
a vida bem sucedida que nada tem a ver com a pobreza
financeira e moral que o indivíduo vivia antes
tendo vergonha dos pais, do bairro de origem
dos amigos de escola, da própria aparência
e até do ínfimo desejo...

porra! eu estou bem no meu fracasso, obrigada
não lutei por ele, mas o aceitei de bom grado
sendo assim não preciso competir
não preciso magoar ninguém
nem ser dissimulada, esnobe
ou filha da puta!

então sugiro mandar para o inferno
os amigos, parentes, karmas
 que se você é feliz 
não sendo falso, mentiroso
ladrão ou invejoso 
lhes causa um desconforto insuportável...

talvez esse seja o grande segredo para espantá-los:

ser feliz
sem medo de ser julgado
e desfrutar da tranquilidade de não ser incomodado 
por telefone, interfone ou internet
durante um bom tempo...

me sentei aqui para escrever um poema
estilo Bukowski
e talvez contaminada
me saiu esse esgoto todo

e eu nem mesmo estou bêbada...

só café e o maldito velho cigarro.

Ana Paula B. Coelho