A nota

Ele não se prende a letra
aos versos da canção
somente lhe importa o tom
a nota que dispara o coração

Ele tem um ritmo lento
um estranho jeito de ser
um não sei quê de indescritível 
terrível não saber o que lhe dá prazer... 

Mas eu ainda o sinto no súbito que transbordou
no que me envolveu feito luar em noite escura
feito onda escorregando por areias quentes
eu o absorvi... irremediavelmente.

Ana Paula B. Coelho

(Clique na foto para ampliar)

Contaminada

O mundo inteiro é um saco de merdas se rasgando. Não posso salvá-lo. Sei que nos movemos em direção à miragem, nossas vidas são desperdiçadas, como as de todo mundo. Eu sei que nove décimos de mim já morreram, mas eu guardo o décimo restante como uma arma.

Charles Bukowski


Ponho café na xícara
acendo meu cigarro
e abro o bloco de notas do computador
pra tentar escrever inutensílios
como já dizia Leminski

sou assim misturada de Agora
Cuba Libre de 70, 80 e 90
entre atual e ultrapassada
nesse instante que ninguém mais usa um notebook
e os smartphones comicham as mãos do mundo
ou será que já existe algo mais moderno
e eu tô aqui de burra e palhaça?

não sei

estou cada dia mais velha
com dores estranhas na coluna
com café me amarelando os dentes
cigarro me deixando o pulmão mais sujo
e o pior: 
a nicotina fodendo meus neurônios
quando escrever ainda é um prazer 
além de comer, dormir e acordar 
pra pensar em escrever, comer, dormir
e acordar outra vez 

o mundo moderno tá me deixando tão out
o cigarro tão velha e demorada
e meu novo marido tá me pesando nos ombros
não por ser uma pessoa ruim, mas por ser marido
e os maridos consomem ossos e alma

então voltando
eu acordo e tem uma tecnologia nova 
em cada bar e boca de esquina, em cada propaganda
e penso se ainda escrevem poemas no papel?

eu teclo!

teclo, teclo
tico e teco movendo parafusos soltos
perdidos, livres pra pensar besteiras
e penso no café ao lado, no cigarro
penso em falar mal das pessoas
(isso só me acomete quando estou sozinha)
no social até posso ser um tanto debochada
mas geralmente tento ser gentil

"um tanto debochada" me fez lembrar dos esnobes
de repente me deu vontade de falar mal dos esnobes
como se fossem importantes, mas não são
são merdas que fedem igual a tantas outras merdas
mas a merda esnobe me irrita mais
pode estar disfarçada de amigo 
ou de parente

tem aquele que só te convida aos eventos
pra te mostrar a casa enorme, o emprego
o casamento, o carro novo
as fotos da última viagem de férias
a vida bem sucedida que nada tem a ver com a pobreza
financeira e moral que o indivíduo vivia antes
tendo vergonha dos pais, do bairro de origem
dos amigos de escola, da própria aparência
e até do ínfimo desejo...

porra! eu estou bem no meu fracasso, obrigada
não lutei por ele, mas o aceitei de bom grado
sendo assim não preciso competir
não preciso magoar ninguém
nem ser dissimulada, esnobe
ou filha da puta!

então sugiro mandar para o inferno
os amigos, parentes, karmas
 que se você é feliz 
não sendo falso, mentiroso
ladrão ou invejoso 
lhes causa um desconforto insuportável...

talvez esse seja o grande segredo para espantá-los:

ser feliz
sem medo de ser julgado
e desfrutar da tranquilidade de não ser incomodado 
por telefone, interfone ou internet
durante um bom tempo...

me sentei aqui para escrever um poema
estilo Bukowski
e talvez contaminada
me saiu esse esgoto todo

e eu nem mesmo estou bêbada...

só café e o maldito velho cigarro.

Ana Paula B. Coelho


Contradição

Um instante é dúvida
poema que dormiu na gaveta

E alguns lábios silenciosos
só são sensuais quando se preocupam

Pois que a vida é essa contradição
é abrir mão daquilo que sempre nos procura.

Ana Paula B. Coelho

(Clique na foto para ampliar)

Senryu 2

Um terço de rima
amém ao poema
que se ilumina.

Ana Paula B. Coelho

(Clique na foto para ampliar)

Calma e inútil

De não me interessar por nada
além do meu próprio prazer
que não é nobre 
nem intelectual
me afirmo calma e inútil
feito um bebê 

Que sorri no colo da mãe
que dorme sem culpa 
depois da fralda trocada
da fome saciada 
na transição das horas 
sempre absolutas.

Ana Paula B. Coelho

(Clique na foto para ampliar)

Porque o instante existe...

Quando vejo postagens no meu Facebook avisando sobre algum sarau poético no Rio, eu me excito silenciosamente e aquela velha vontade de comparecer a algum desses eventos me come por dentro. Tudo porque, embora eu morra de vontade de expor meus poemas em público, sempre me bate aquele medo, aquela dúvida que logo se transforma na seguinte pergunta: "mas você é de fato poeta?". Bem, escrevo meus rabiscos desde que eu era adolescente e embora acorde no meio da madrugada quase todos os dias, apenas para escrever "poemas" doidos que não me deixam dormir, eu penso que posso não ser poeta ainda. Mas e se eu for? Penso se Cecília, Florbela ou Leminski se perguntavam a mesma coisa e eu acho que sim. Além da pergunta, na cabeça deles passou também as seguintes inspirações:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Cecília Meireles


Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior 
Do que os homens! Morder como quem beija! 
É ser mendigo e dar como quem seja 
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! 


Florbela Espanca
                                                                                                                                             
inverno
primavera
poeta é 
quem se considera

Paulo Leminski

Então, pode ser que eu seja mesmo poeta e talvez um dia eu compareça a um desses saraus de poesia para finalmente falar do que escrevo.

Ana Paula B. Coelho

Milagres de universo

"Porque sempre que abro meus olhos e te vejo ao meu lado, tenho a certeza da escolha... A certeza de que um simples momento pode ser o começo de tantos outros perfeitos..."


Entra em mim 
e me abre o coração com teus caminhos de ouro
pois preciso ser amiga da felicidade...

Preciso que minha intenção conheça o que é bondade
já tão rara na maioria das pessoas 
mas tão presente e radiante 
na simplicidade dos teus gestos...

Me toca 
e reacende ao teu calor meus planos de pele 
de forma comovente, tão convincente 
que eu acredite ser o meu desejo 
merecedor da tua ferocidade de pétala...

Me olhe nos olhos e me mostre o valor das manhãs
como se tua pupila fosse o único sol que eu pudesse alcançar
ainda na condição humana - cheia de defeitos e pecados... 

Que meu amor seja recompensado por querer-te tanto!

Dê-me atenção - teu pão como alimento ao corpo
a alma, a ilusão que sustenta cotidianos movimentos
que desvenda segredos e opera milagres de universo.

Ana Paula B. Coelho

Portos reversos

Vestiu-se de mar e navegou seus barcos de papel 
num rumo secreto de poemas 

ao sabor dos ventos foi deusa etérea 
e soprou novo destino aos velhos sonhos

dos cabelos voaram-lhe rimas 
a impulsionar velas condutoras

dos olhos a luz de um intenso farol 
sinalizou portos reversos.

Ana Paula B. Coelho

(Clique na foto para ampliar)