Imprudência

           Seus olhos eram impenetráveis, mesmo nas horas menos instáveis do cotidiano. Talvez por isso eu teimasse em me manter numa distância segura, como os carros que se distanciam das carretas nas perigosas estradas em dias de chuva... Mesmo assim, como os veículos não podem evitar alguns imprevistos de trânsito, eu não pude evitar o impacto daquele sorriso e gravemente derrapei nas curvas de seu contorno irreversível. 

Ana Paula B. Coelho


Bistrô desilusão

          Ele sentou-se à mesa do bistrô, com todos os cansaços possíveis aos olhos e ao coração. E foi deixando o corpo se ajustar, ou melhor, se desajustar na cadeira diante de mim. Logo pediu vinho tinto ao garçom, em vez da habitual cerveja e esboçando um sorriso de lua minguante, meio que me sussurrou insatisfeito:
           Antes de morrer ainda estudo astronomia... Ou psicologia...
          – Sei. Como aqueles outros cursos que abandonou sem remorso...
           Talvez eu devesse nessa merda de vida, surfar entre as estrelas. Ou meter meu cérebro num saco preto cheio de gatos para finalmente me reconhecer como psicopata... O que acha disso?
           Mas você já é poeta  Argumentei, alguns segundos antes do garçom trazer o vinho que bebemos, num cúmplice silêncio, até a metade mais carente daquela longa madrugada.

Ana Paula B. Coelho


Impuro

As folhas
voltando serenas
ao mesmo lugar

Descendo
dançando ao vento
pra me revelar

O tempo
estrada indecisa
precisa passar

Ponteiros
sentido anti-horário
me faz recordar

Um rosto
no ontem - meu ar
no hoje, um momento

Impuro! 
veneno aos pulmões
só me faz sufocar.

Ana Paula B. Coelho

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Escudo

Meu fechar de olhos
é abismo escuro
talvez um escudo
contra a realidade

que não rima comigo
não me estrutura
me causa fissuras
nas extremidades

desgastando minha poesia
deformando-lhe a geografia
com versos que erupcionam
vocábulos descabidos.

Ana Paula B. Coelho

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Na batida

A poesia acelera meu coração
como se fosse válida nas rimas
como se fosse enredo na canção

e na batida desaba meu dissabor
sem cor, sem nuances - betume
apenas o lume solitário do luar

no peito meu cântico insereno
um templo a me desesperar
o ponto final de um verso
o certo a me desacertar.

Ana Paula B. Coelho

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Meu alívio

No canto da minha boca habita um silêncio
um sorriso contido diante das lembranças
imutáveis, incandescentes, (in)cognitivas

e por entre meus lábios se escondem
perdidas estrelas, cometa, céu nublado
dores rarefeitas em intensas acumulações

mas que meu alívio seja qualquer nova letra

uma poesia mais estreita entre mim e você.

Ana Paula B. Coelho

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Confissões

Faça tua oração

que o movimento dos teus lábios
é meu labirinto de aflições
- confissões que me tiram o chão
esse que trilhei delírio de palavras...

E o que há de mais sagrado na paixão
é que não pesa na balança outro futuro
aprisiona sem prender-te os pulsos
dilacera sem sequer ter com o que ferir.

Ana Paula B. Coelho

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